ISSO NÃO É UMA PAISAGEM

(Essa é pra quem gosta de um bom papo sobre linguagem, e o fazer das identidades de marca é pleno dessas discussões. Introdução feita, vamos lá:) As imagens do livro de desenhos DESPAISAGEM, de Francisco Faria (Despaisagem – desenhos, Mirabilia, 2008, 208 pp.), são incríveis. E ficam ainda melhores depois de iluminadas pela resenha 'A Beleza Complexa', de Luis Dolhnikoff. Abaixo copio um bom trecho. Mas para aumentar a vontade de comprar o livro, recomendo ver outras imagens e ler mais aqui. Escreveu Dolhnikoff: "Os grandes conjuntos de coisas naturais sendo inapreensíveis, a arte que os têm como objeto é outra forma de redução. E se a redução é inevitável, e se também é inevitável a consciência do reducionismo [...], é igualmente inevitável determinar a forma de reduzir [...]. Francisco Faria decide apagar a luz do paraíso [...], ao conceber criar um híbrido (do grego hýbris, o descomedimento, aquilo que atenta contra a harmonia do cosmos conforme criado pelos deuses). Ou melhor: ao conceber aprofundar o hibridismo. Sendo um artefato, o desenho da paisagem natural é, de certa forma, um híbrido por natureza. Francisco Faria concebe, então, criar um híbrido híbrido, um híbrido ao quadrado, um híbrido que se dobra sobre si mesmo. Se o desenho da paisagem natural é, ao mesmo tempo, natural e artificial, natural e cultural, e se a paisagem é espaço e luz, tomaria o espaço da paisagem natural, a luz e a composição da paisagem cultural (também conhecida como história da arte). A luz da composição. A composição da luz. É a luz, enfim, que lança sobre esse paraíso uma sombra incontornável [...]. Uma das principais referências do desenho de paisagem de Francisco Faria não está [porém] em qualquer paisagem, sequer em qualquer obra de artes plásticas, mas na poesia. Poesia é sintaxe — o mesmo que disposição. A poesia é feita pela disposição particular da matéria verbal — distinta, p. ex., da disposição prosaica. E não se trata aqui do arranjo na página, mas das relações internas entre as palavras. Sintaxe é, enfim, disposição e correlação. Mas poesia também é ritmo e tom. Tom, ritmo, correlação, disposição: os mesmos ingredientes, representados por outros elementos, existem no desenho. Não se trata de tradução (muito menos de ilustração): não há como traduzir um desenho, que é irredutível — se não o fosse, não teria razão de ser. Desenhos não traduzem poemas, poemas não traduzem desenhos. Isto posto, poesia e desenho, ou poesia e pintura, têm ingredientes equivalentes. ‘A poesia é uma pintura que fala, a pintura é uma poesia muda’, diz um antigo aforismo grego. [...] Essa relação profunda, não-ilustrativa, entre obra visual e obra verbal tem um nome: ecfrase. Originalmente, a ecfrase é uma descrição de uma pintura. A ecfrase, porém, tem uma longa tradição, que deu ao conceito amplitude e densidade. Assim, Alexander von Humboldt, o grande naturalista, nas suas ‘Conferências sobre o Cosmos’ (1828), unifica os vários discursos não-científicos sobre a natureza como ecfrases da natureza: esta é, então, tomada como a obra visual em que se apóiam os textos. Francisco Faria amplia o conceito de ecfrase noutro sentido: se poemas podem ser feitos tendo desenhos por referência, desenhos podem ser feitos tendo por referência poemas. Além de outros tipos de texto. Na verdade, de todos os tipos de texto.”